A ESTÉTICA DO ROMANCE – SÉRGIO MENDES

A Estética do Romance

Escrevo estas linhas a bordo do Samyaza. 

Durante muito tempo pensei que a literatura servia para fugir ─ ou para descrever o que se perdeu. Hoje, sei: escreve-se para estar presente. Cada frase é uma forma de ressurreição, uma maneira de não desaparecer na corrente da mesmidade e da naturalização da infâmia. 

Chamo-lhe Estética da Consciência Sensível: não é teoria, é resistência. É luta urgente.

A ESTÉTICA DO ROMANCE


Estética da Consciência Sensível ─ Manifesto e Fundamentos Teóricos

A escrita não representa o real, acontece nele. O verbo é organismo, e o texto — o seu metabolismo. A linguagem deixa de ser veículo de sentido e torna-se tecido vivo, atravessado por impulsos, hesitações, tremores. O escritor não descreve: transpira. Cada frase é um movimento celular onde o sentir e o pensar se tocam. O belo não reside na harmonia, mas na precisão do estremecimento, quando a palavra coincide com a vibração que a gerou. A forma é o corpo da emoção, e só o corpo pensa até ao fim.

Embora a minha escrita revele imperfeições formais, ela procura alcançar a substância vital da linguagem ─ aquilo a que chamo o sangue da palavra. Tal como a Física, apesar da sua precisão conceptual, não consegue abarcar a totalidade do real, também a literatura falha sempre na tentativa de traduzir a experiência humana. Essa falha, contudo, é fértil: nela se abre o espaço do símbolo e da intuição poética, onde a razão cede lugar à escuta do indizível.

O escritor não descreve o mundo; pressente-o. A sua consciência não é uma instância racional que observa à distância, mas uma presença encarnada que sente antes de compreender. Escrever é ser atravessado. O escritor é um sismógrafo ─ um corpo em escuta, captando as vibrações do ser e da natureza, registando o que treme antes de se tornar palavra.

A literatura deixa de se organizar de forma cronológica ou psicológica: o tempo torna-se ondulatório, enredando-se no cruzamento entre memória, sensação e pensamento. O que emerge é uma mitologia da imanência sensível, onde a experiência humana é continuamente recriada pelo contacto entre o visível e o invisível.

A consciência não se limita a refletir o real ─ transforma-o, tal como o real transforma a própria consciência. A beleza, por sua vez, deixa de residir no consolo e desloca-se para a precisão do sentir, para a lucidez que nasce da atenção plena ao instante.

No fundo, deste movimento entre falha e revelação, matéria e espírito, nasce aquilo a que se pode chamar uma Estética da Consciência Sensível: uma poética onde o pensamento se faz carne e a emoção se torna forma de conhecimento.

Esta estética não se confunde com os paradigmas da filosofia analítica. Enquanto esta procura a clareza lógica e a verificação conceptual, a Estética da Consciência Sensível parte da opacidade fecunda do sentir, da intuição que antecede a forma. A filosofia analítica interroga o significado através da linguagem; esta estética interroga a linguagem através da experiência.

Contudo, há um ponto de contacto entre ambas: a inquietação perante o mistério da consciência. Se a análise tenta compreender o modo como o pensamento representa o mundo, a consciência sensível pergunta-se como o mundo se inscreve no pensamento ─ como o real pulsa antes de se tornar conceito. Nesse cruzamento, a literatura oferece-se como espaço intermédio, capaz de tornar visível o invisível e de dar voz à vibração anterior ao sentido.

Assim, o escritor não é um teórico da linguagem, mas o seu corpo vivo. Um sismógrafo da consciência humana em diálogo com o cosmos. Na Estética da Consciência Sensível, escrever é escutar o mundo até o verbo arder ─ e talvez seja por isso que escrevo: para escutar o que ainda não existe.

A partir deste enquadramento, impõe-se compreender a Estética da Consciência Sensível não apenas como impulso literário, mas como estrutura de pensamento. O seu campo manifesta-se em três eixos fundamentais ─ ontológico, estético e ético ─ que definem a relação entre o ser, o tempo e o sentir.

I. Eixo Ontológico ─ O Ser como Vibração e Presença

O ser, aqui, não é conceito fixo, mas vibração. O real não repousa ─ oscila. Maurice Merleau-Ponty chamou-lhe “entrelaçamento da carne do mundo”: o corpo é simultaneamente sujeito e espaço de manifestação do ser – Le Visible et l’Invisible (1964).

O escritor encarna esse entrelaçamento ─ mais do que o pensar, vive-o. Mesmo quando não compreende, capta o tremor. Cada frase é o registo de uma passagem: o instante em que o mundo se torna presença e, nesse gesto, transforma quem o pressente.

Escrever, portanto, é deixar-se atravessar. A linguagem não representa, acontece. Heidegger lembrava que “a linguagem é a casa do ser” – Unterwegs zur Sprache (1959); talvez o escritor seja apenas quem a habita com o corpo em brasa. Talvez seja essa a Graça do ser.

A Estética da Consciência Sensível substitui a ideia de representação por uma ontologia do toque: o real e o humano entrelaçam-se, um transformando o outro. O escritor é o registo desse toque ─ um acontecimento vivo do ser.

II. Eixo Estético ─ O Tempo Ondulatório e a Mitologia da Imanência

Se o ser vibra, o tempo ondula. A narrativa deixa de ser linha para ser respiração.
O passado não está atrás: pulsa no presente. A memória não é arquivo, é força viva que regressa.

Bachelard via no instante poético “uma miniatura de eternidade” – L’Intuition de l’Instant (1932). Tal como desvendava Llansol, onde o texto respira o mundo que o escreve. Ambos intuíam o mesmo: o tempo literário é interior, pulsa no corpo e não nos ponteiros do relógio.

Nesta estética, o tempo é uma matéria elástica. Cada imagem contém uma constelação de instantes, e a linguagem torna-se o seu campo magnético. O escritor move-se nesse fluxo, guiado por ritmos que não domina ─ apenas sente.

É daqui que nasce a mitologia da imanência sensível: uma cosmologia onde o divino já não habita o alto, mas a vibração da matéria. O símbolo deixa de apontar para o além e começa a revelar o dentro. Agamben chamou ao poema “a arqueologia do presente” – L’uso dei corpi (2014) ─ é também o que aqui se tenta: escavar o instante até que ele revele o seu núcleo sagrado. A palavra, então, não descreve: convoca. O mundo responde em silêncio.

III. Eixo Ético — A Beleza como Precisão do Sentir

A ética desta estética é a da atenção. A beleza não é harmonia ─ é exatidão. Não é refúgio ─ é ferida. Herberto Helder disse-o melhor: “a poesia é a experiência do mundo em combustão” – Photomaton & Vox (1979). A combustão é o ponto onde ética e estética se confundem. Ser belo é ser fiel ao que se sente, mesmo que doa. O escritor não procura a frase perfeita, mas a frase viva ─ a que respira e fere. Escrever é uma forma de cuidado e, às vezes, de culpa. Simone Weil viu na atenção a mais pura forma de generosidade: talvez a literatura seja isso ─ uma escuta que também se deixa consumir. A consciência transforma o real ao senti-lo, e o real transforma a consciência ao deixar-se sentir. É um circuito de reciprocidade onde o verbo é responsabilidade.

Síntese

A Estética da Consciência Sensível propõe reconciliar o que a modernidade separou: o sentir e o pensar, o corpo e o símbolo, o humano e o mundo. A consciência não é observadora, é criadora. A literatura não é espelho, é vibração. Escrever é escutar o mundo até o verbo arder ─ e guardar, nas cinzas, a forma do que ainda vive.

Sérgio Mendes, 30 de outubro de 2025


Aqui, encontra toda a informação que explica a minha motivação para ser escritor
, o meu desejo de escrever para crianças e jovens, bem como, a minha motivação como escritor de romances para adultos.

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